sábado, 18 de dezembro de 2010

conversinha...

já desmedi tanto as palavras
já desli
já as abandonei num canto
elas voltam
com seus dons
com seu dizer amoroso
insetos teimosos
mato algumas
mil aparecem
fico olhando o festim
a conversinha delas...

sábado, 11 de dezembro de 2010

máquina de escrever amor

se eu amo
que seja
como seus tipos
coligrar fiar
palavras
no branco do papel

sem tirar nem pôr

máquina de amar
fazer amor
seja com quem for

tipos
máquina de escrever amor
toques
fazer amor

inventariar tipos
caligrafar
maquinar amores

quantos
tipos

fazer

amor

sábado, 20 de novembro de 2010

pecar sem deus

Então, feliz, peguei seu jeito! Mais uns passos...talvez o quatro centésimo octagéssimo terceiro...mas, deixa estar que esse caminho vai sendo!
Hoje fez sol, táqui...ali fora...na sombra, prancheta, caneta, bossa nova, seusózinhos...e lábios claros grossos num sorriso a me olhar. "Que incrível! De onde viemos pra nos encontrar? Estávamos já há tanto tempo tão perto e não nos vimos...e até nos falamos..." (lembrança minha)
Beleza de enjoar, de doer, e os clichês se acomodando feito gato...se desdobrando...compondo...lábios grossos, sem baton, sem pressa no meus dedos...de linha...lineamento...desenhando...com pondo.. tocando...lábiosdedos...boca.
Diadorim, diz pra mim..ser tão assim é pecar sem deus?
Vamos diz simular, comer palavras na carne dos corpos enquanto seus lábios não vem...quase no meio seu nome e pergunto a lua que perde-esse a...vagando nas núvens que encobre e deixa lu se a na morar.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O LIVRO - 1ª página

Ele tem um nome, mas, não importa, vamos chamá-lo de ele. Depois da Carta, fez as malas e viajou para uma cidade do interior, sua cidade natal. Hospedou-se num hotel barato porque seu dinheiro era curto. Um quarto sem banheiro, cama, tv, cobertor, algum mofo nas paredes amarelas, uma janela por onde se avistava uma mangueira com frutos. Demanhã café farto. Enfarto no peito. As letras pipocando na tela do netbook. Chovia triste. Alguns pássaros cantam. Certeza de nada. Nada corroia. Uma vontade de virar livro. Olhou invejoso para Grande Sertão estendido sobre a cama. Na pasta, Deleuze e Goethe. Escreve algumas frases sobre si e em seguida as apaga com um sentimento de que não queria contar sua própria história como se fosse uma crônica autorreferente. A quem interessa saber seus problemas emocionais, sexuais, amorosos? Então, imaginou algum tema que pudesse levá-lo pra dentro do livro. Assim como fez  Clarice perto do coração selvagem. Mas aí seria a história de um personagem qualquer servindo como representante do autor. Não era bem isso que desejava. Ele não queria contar uma história, não queria fazer crônica, ensaio, declaração, narração, descrição, nada disso. Queria virar livro. Não poderia ser nenhum roteiro. Nem diálogo. Também não lhe era simpática a ideia de fazer uma espécie de teoria. A linguagem jornalística lhe era até atraente, mas não queria persuadir ninguém a nada. Nada de poesia. Nem filosofia. Mas tinha que ser um livro. Não desses de fotografia, gravuras, ou enciclopédia. Nem mesmo algum vocabulário. Alguém já havia escrito um livro de citações. Nenhum resumo de nada. Nenhuma resenha. Tese alguma. Somente um livro. Não sobre música, nem de cifras, tampouco sobre qualquer método que ensine qualquer coisa. Um livro que fosse comentários sobre cinema, teatro, literatura, cultura em geral, não. Blog, não. Resenha sobre os principais pensadores do século, jamais. Catálogo de viagens, nem pagando. Mapas, gráficos, bulas, panfletos, folders, nem morto. Qualquer propaganda estava fora de seu objetivo. Nem mesmo o simpático escrito de cordel. Os monumentais livros de arte. Os dicionários. Os cadernos. Nada disso. Nada de mídia alguma. Fechou o netbook e saiu pra dar uma volta.

domingo, 7 de novembro de 2010

depois veio a carta...

Na carta ele explicou como realmente se exerce na vida, no amor, no sexo, e tudo mais...ele achava que seria simples, que amor pudesse se exercer com simplicidade, como parecia estar em seu coração. Ela não conseguiu ou não pode entender. Sorriu, brincou, falou, contou suas história, bebeu vinho, e se foi... Ele ficou com um buraco no peito e um choro grudado no olho. No dia seguinte escreveu a carta. Disse que não mais teria tanto cuidado ao se exercer na vida, pois não adiantou nada. Ele, afoito, não tolerava o tempo que nos arrasta. Leu, escreveu, viu filmes, retratos, cozinhou, tocou violão, cantou, conversou com amigos virtuais, e o telefone mudo. Olhava seus livros espalhados pela mesa, pela estante...conversava em silencio com eles...as vezes abria algum..e o escutava. Era tanta gente ali na sua casa falando silenciosamente com ele: Clarice, João Rosa, Raduan, Nol, Carlos, muitos, muitos...Guimarães: ..."eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo mundo..." Ele até ficava pensando que poderia passar o resto da vida ali, entre "os caras"...e que esse negócio de muito amar corpo poderia ser revolvido com o seu próprio...e se resolvia, provisoriamente...Um dia teve uma fantasia: viu-se todo tatuado de letras, mas as letras não formavam frases com sentido. Aquilo ficou matutando na sua cabeça. Esqueceu; mas como se esquece um sonho. Pegou da máquina de escrever e compôs um texto. Era início do séc. XXI. Começou a contar a história do homem que, por amor, virou livro.

sábado, 6 de novembro de 2010

te amo

Falei te amo
Nem passei pelo voglio bene
E fiquei sem pele

Alguém ainda faz isso?
Pergunto ao Outro

Ele ri, generoso
Deixa um pouco de você como sinal
Lembra do choro?
Não se perca tanto
Que sorte que há o corpo
Pra se sair do infinito das palavras

domingo, 17 de outubro de 2010

Debaixo dos meus olhos....

Eles se soltaram das amarras que os prendiam ao seu poder; ao poder das suas palavras; ao gozo. Era uma beleza vê-la sorrir, escondida. Cada fuga era festejada com risos e euforias. Quixotesco, eu brigava contra seus monstros aterrorizantes, mas, quase como fumaça, feitiço, poesia. Mas o que eu vejo não é um texto em que a leitura me embarca; vejo sua imagem comprimida nos olhos - sem choro - mas cheios de dor. O que quer afogar com o desejo? Nostalgio o ciúme que me trazia a esperança e a certeza de que nela vive - não a simples vida - mas, o amor.

sábado, 25 de setembro de 2010

bilhete 4

Ele passou a catar palavras em qualquer coisa: caixa de leite, papel de bala, ticket de restaurante, recibo bancário, capa de livro... E até mesmo onde não havia, ele a via. Sangrando. Mas que vida é essa de tanta gente maluca? Gente me traga o tempo da hora do café da tarde, sem pressa, bolo de milho, cheiro de casa, cão dormindo, papel de pão, percurso pelo caminho que vai dar no sol. Vontade de cantar Samarina...
Mas estou aqui enterrado nesse tempo da preguiça cançada de nada, da vocação forçada, dos olhares famintos mas de que....de que são feitos os desejos que não se realizam? pra onde vão...por que vieram?

domingo, 19 de setembro de 2010

Bilhete 3

Mas o efeito daquele encontro foi surpreendente para todos. A senha do portal estava em cada letra da palavra amor. Todos se perguntavam como podia ser assim. Depois de tudo aquilo ela não se conteve e disse a verdade, não toda. Não foi muito difícil perceber que as consequências seriam nefastas. O que pode ser mais cortante que o amor? O sangue escorreu por todos os lados onde havia fenda, enchendo de um vermelho escarlate o vazio dos corações. Cada um seguiu seu caminho com aquela nódoa no peito. A vida deve prosseguir.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Bilhete 2

Mas um raptor levou o seu olhar de mim. Passada a euforia, o fundo do mar no seu coração. Hoje anda cabisbaixa aguando a terra. O mato cresce no seu caminho escondendo a minha prenda. Formigas trilham cegamente seus sais. Fosse assim imprudente no amor nunca saberia eu o tempo deste mês precipitado em vinte anos. Melhor assim? Vai saber... o corte dos acontecimentos é o talhado que se apresenta. Efêmero no estar, duro no deixar. E você ainda latejando na minha cabeça. Tomo um bilhete com meio copo d'água. Fico achando que você é aquela imagem da foto sorrindo. De matéria sou feito? Clarice bate no alto da minha garganta em pulsos dissonantes: você é o meu sonho! Ando vago, e em cada passo quedo em vertígem. Um solo de guitarra me ampara. Alguém há de encontrar onde foi que deixei a senha deste portal...

domingo, 5 de setembro de 2010

Bilhete

Vazio do real encabulante dos seus lábios, de olhos afogados no mar, salgo a tarde deste mês nos vestígios que catei naquele encontro. O que nos impede? Interditados pelo tempo mássico que nos caiu de pronto sobre nossas cabeças, abro perto do caração selvagem, bolino as palavras de Clarice no afã de que uma mágica faça mover o universo trazendo a mim sua voz. Não ouso perder o prazer de receber tão encantadora prenda. Que perigo mais eu não correria escrevendo verbos? Verso em prosa pra te conquistar o coração? Num mês inteiro - vinte anos - o tempo que amadureceu pra mim uma alma tão doce. Olho o horizonte. Vela. Mar, montes, e te vejo nua deitada em redes, só. Mas antes que este mês termine nos desmaios das ondas cortadas por vinte anos assim, você há de me erguer novamente as pálpebras e queimar-me a pele com seus olhos.

sábado, 7 de agosto de 2010

Sussurro letícia

Escrever é saber esculpir


Por isso não sou bom

no que faço

Não sei esculpir

Escrevo tudo que me vêm à cabeça

Acenderia um cigarro

Colocaria um filme bom

Uma taça de vinho cabernet

E ficaria pensando

Como publicar isso!?

Cochilo... durmo.

Não lembro do sonho

Mas havia uma máquina

Tipo de oftalmologia

Eu brincava com as ondas

Até que apertei um botão

Um raio invisível entrou pelo meu ouvido direito

Fiquei surdo imediatamente

Letícia veio me socorrer

- com sua doçura -

E eu nem sabia que era

um sonho.

domingo, 1 de agosto de 2010

Ela é insuportável! Bonita, não é linda; muito bonita, pois, tem porte. Quando anda cabeça erguida não é arrogante - inquietante. Quase todos olham: os caes, os homens, as fêmeas, mulheres, flanelinhas brigam. Até algum que esteja ao seu lado, olha em espio. Ela finje não saber por pura falta de vontade de colocar algo assim tão óbvio em questão.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

noite fúcsia

Transcorria o dia sereno como a mão segura escorrendo pelos cabelos quando tocou a campanhia. Eu havia encomendado um galão d'água. Peguei o dinheiro, desci as escadas, e fui abrir a porta. Letícia?! Mas, como assim!? A gente ainda não se conhece; como pode estar aqui? Vim porque você me chamou. Não se lembra? (Mostrou-me um bilhete: Que sejam sempre vãs as filosofias enquanto há beleza escondida nas paisagens distantes que nunca acabem de satisfazer ninguém. Se é verdade não sei, mas se quiser conhecer assim mesmo (quase a si mesmo...rs) recomendo boa companhia. Desculpa medrosa parece túmulo do samba e falta de tempo parece desculpa esfarrapada. Mal mal São Paulo nasceu o Rio de Janeiro já era terreiro de baiana. Ass. Sujeito). Surpreso e feliz a convidei imediatamente para entrar. Um tanto sem jeito e meio confuso pedi que se sentasse na poltrona. Sentei-me ao lado quase sem acreditar. Quer um licor de genipapo? Na minha confusão acabei derramando licor nas suas pernas (parece coisa de filme) e (sem pensar) meti as mãos para limpar (juro que foi sem pensar). Ela, com um ar clepto, me deixou limpá-la até que me toquei. Desculpei-me. Letícia contou que a viagem foi longa. Estava cansada. Percebi que sua canseira não era somente coisa de quem muito se esforçou fisicamente. Havia algo mais. Não perguntei, nem perscrutei. Senti. Percebi que lhe faltavam a pontinha a última pena da asa esquerda e a ponta da asa direita. Não disse nada. Arranjei-lhe toalha de banho. Fiz um chá de cidreira. Arrumei uma cama bem limpa para o seu repouso.

domingo, 25 de julho de 2010

Ei! O que é isso?

Se você estivesse aqui...nossa, nem sei o que pensar...é curioso, mas, quantas vezes te imagino em minhas coisas...logo depois pondero...vêm as diferenças...me aquieto..mas depois de ler este seu último telegrama me deu uma coisa...que nem sei...coisa de preencher alma...coisa que já vivi com você...coisas simples mas intensas...como uma dança...sem querer me deu vida, sabe...e eu estou abusando mesmo pois as coisas estão muito punk por aqui...leio suas palavras...sinto amenizar o aperto no peito...é como o chão que pisei, as folhas, a água fria do valão lavando meu corpo...falo seu nome no anseio da sua presença...lembro de quantas vezes desejei você aqui comigo. Hoje fui a praia. Sol brilhante. Mar limpo. Joguei meu corpo nas ondas e me deixei levar. Nadei de volta. Deitei na areia e deixei o sol me aquecer.

A noite amena...pede um bom vinho...

sábado, 24 de julho de 2010

parte V

Carlina estava exatamente como eu a havia deixado, boneca de pano. Somente na imagem do espelho eu a pude ver mulher sedutora vestida de azul. Apaguei a luz e fui deitar-me deixando ser tomado por aquela fantasia que transformou meu quarto numa enorme tela cinematográfica. Eu já não distinguia mais o era sonho, fantasia, realidade; Carlina deitou-se ao meu lado e beijou-me. Eu poderia descrever como foi nossa noite de amor, mas vou deixá-los imaginar algo como quem não cuida mais do mundo um segundo sequer. Noite de alucinação. A menina boneca se fez carne em mim. Acordei chorando feito criança. Não entendi nada. Na lembrança eu amei Carlina em sonhos, mas ali, agora, acordo eu chorava copiosamente. Que estranho! Havia em mim um sentimento absurdo de nostalgia. Fui pra rodoviaria e comprei uma passagem pra minha cidade natal. Lá chegando fui logo até o sítio onde eu nasci. Finquei os pés na lama dos meus antepassados, o riacho onde refresquei minha infância de excessos afetivos...o cheiro do pasto, do valão, o boi, a cacimba, o pé-de-goiaba, o solo arado, a carcaça do bicho, a casa velha, maribondos, cana arrancada a mão, a água fresca lavando o meu rosto, a conversa com o primo, as flores do mato, a lembrança dos primeiros fluidos da libido, a lua, milhões de estrelas, o mesmo enigma. No cair da tarde rumei de volta à cidadezinha de Carabuçu. Ao chegar encontro um telegrama que fora enfiado por debaixo da porta - provavelmente pelo vizinho.
[ "Tão longe de tudo, tão perto do arcaico. Me diz por quê. Por que a necessidade de ir? Qual foi a mágica? Por que depois de chorar muito na festa? Pós mudança, pós baiana...

Queria estar aí com vc, vivenciar com vc a sua origem...
bjs
Carlina"]
O telegrama foi postado no Paraguai. Eu não entendi nada. O que teria acontecido? Carlina fora ao Paraguai enquanto eu viajava? Teria fugido? Como soube da festa e de baiana? Eu nada falei de festa até agora! Por que a deixei pra trás?? Bom, de qualquer forma eu estava melhor. Mais vivo por ter revivido a minha origem arcaica, e por saber que Carlina me tem amor. Amanhã vou até o litoral me banhar no mar do Espirito Santo e tomar um pouco de sol.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

parte IV

Carlina pegou uns badulaques que estavam nas gavetas, assim como uns panos da Índia, que Aurélia deixara pendurados no cabideiro quando foi embora. Fiquei por uns instantes ali olhando sua felicidade de diante do espelho. Um tanto desajeitada ela tentava achar uma composição. Eu não percebi que estava ainda só de toalha quando o sorriso maldoso de Carlina me despiu. Neste momento, se ainda havia em mim alguma intensão de dá-la ao abrigo, esta se dissipou completamente. Hesitei num pensamento que insistia em querer saber mais; havia uma convicção em mim de que se eu tentasse alguma conversa com ela tudo isso se desmoronaria e seria como se eu tivesse acordado de um sonho. Mas, o que fazer? Esperar simplesmente o desenrolar dos fatos? Sempre fui um homem de atitude. Mesmo quando isto não redundava em vitória preferia sempre arriscar do que esperar as coisas acontecerem. Mas, nunca me achei diante de situação tão inusitada, e o ar fantástico que aquilo tudo suscitava não diminuía em nada a expectativa que crescia em mim; como geralmente ocorre quando saio com alguma garota que ainda não tenho muita intimidade. No dia seguinte, logo pela manhã, tive a impressão de que tudo não passava de um sonho, mas, quando cheguei à cozinha encontrei café pronto, pão comprado, leite e um pedaço de queijo branco sobre a mesa. Sentada, com um espelhinho apoiado nos joelhos, Carlina estava rotocando a maquilagem. Já havia mudado a sombra verde para uma cor rosada, baton suavemente lilás. Nas bochechas passara um pouco do mesmo baton e espalhou com o dedo. Delineou de preto os olhos e soltou os cabelos ruivos. Vestia numa camisolinha de cetim azul claro. Quando me aproximei...

quinta-feira, 15 de julho de 2010

parte III

Dobrei a carta e a coloquei de volta no envelope. Olhei Carlina em cima da cama e pressenti-lhe um desejo. Ela parecia tentar se ver no espelho. Temi algo, mas não sabia exatamente o quê. Era forte a imagem daquela boneca tão viva depois de tudo que lhe ocorrera. Ajeitei-lhe o vestido que deixava suas pernas a mostra. Senti uma ponta de vergonha por estar com Carlina no colo. Vou dá-la para alguma menina. Neste momento toca o telefone. Coloco Carlina sobre a penteadeira. Sr. Vinícius? Sim. Aqui é do Abrigo das Meninas. Estamos ligando para saber se o Sr. teria algo a ofertar à Instituição, pois, haverá uma festividade e estamos recolhendo donativos. Meu coração veio à boca. Eu sou um sujeito meio cético. Não cultuo coisas místicas e tenhho alguma resistência em acreditar que haja relações transcendentes ocultas no cosmos. Para mim vivemos no caos. Tudo é coincidência. Mas aquilo foi demais! Eu estava exatamente pensando em algo assim quando alguém telefona? Tomei nota do endereço do Abrigo. Quando volto os olhos para Carlina percebo claramente que ela estava sentada diante do espelho. Eu não me lembro de como a coloquei na penteadeira. Ah! Estou vendo coisas, mas, continuava intrigando-me aquela carta. Quem a teria escrito? Pensei em algumas possibilidades. Menos na que de poderia ser a própria Carlina quem a escreveu. Eu devo estar trabalhando demais. Estou muito sensível e por demais imaginativo. Vou descansar um pouco. Enquanto tomava banho tive a nítida impressão de ouvir alguém cantando. Fechei o chuveiro. Nada. Abri. De novo. Tentei entender qual era a música. Não é possível! Eu ouvia quase nítido. Estou reconhecendo. É Ontem ao Luar, do Catulo da Paixão Cearense. Mas de quem era essa voz. Que coisa mais linda! Era Carlina. Deixei-a cantar até o final. Senti um sufoco no coração e um aperto na garganta. Fechei a água. A música cessou. Enrolei-me na toalha. Fui pé a pé até o quarto. A porta estava entreaberta. Lentamente fui empurrando. O ranger das dobradiças fazia aumentar o suspense. Vi, pelo reflexo do espelho...

terça-feira, 13 de julho de 2010

je suis amoureuse!

                                              parte I

 Acho que os lixeiros estavam em greve quando eu andava pelo centro da cidade e sem querer chutei-a. Ela deslizou por uns dois metros - eu andava apressadamente - indo parar perto do bueiro, cuja tampa havia sido retirada (talvez para servir de churrasqueira).
   Ela tinha um colar de miçangas coloridas no pescoço, uma jardineira amarela, fitas nos cabelos, sapatinhos pretos, e, nos olhos, sombras verdes. Seus cílios pretos eram grandes feito asas de beija-flor.
  Quase caiu naquele buraco imundo! Mas eu corri com muito sentimento, tomei-a em minhas mãos. Limpei um pouco a sujeira que não estava encardida - tive que dar uns tapinhas para tirar o pó. Foi quando percebi que Carlina sorria.
   Seu nome bordado no peito do vestido fazia destacar-se pela cor-de-rosa. Fiquei envergonhado quando me dei conta que estava observando os seus lábios vermelhos (ela não me parecia ter menos de dezoito anos).
  Olhos verdes! Vocês me perseguem? Acolchoei um canto da minha pasta e a acolhi naquele ninho como fazem aqueles que gostam de filhotes. É muito sutil o amor.
   Enquanto caminhava em direção ao terminal de ônibus, já vagarosamente, pensei no que poderia ter acontecido a ela para estar jogada daquele jeito junto ao lixo da cidade. Não havia marcas de alguma violência em seu corpo; pelo menos nas partes visíveis (eu não ousaria verificar no todo, ali, aos olhos dos passantes).
   Percebi em mim uma grave mudança no ritmo do meu coração. Ele batia descompassado. O sangue corria mais lento na medida em que no meu caminho fui observando aquelas vidas que se acotovelavam a procura de algum espaço para dormir nas calçadas e cantos da praça, recorrendo apenas a alguns pedaços de papelão. Alguns tinham uma peleja que mais parecia vinda de uma guerra.
   Carlina estava sem nenhuma proteção. Jogada mesmo ao solo. Uma perna dobrara-se sobre a outra; o chão no rosto. Corri para apanhá-la, estranho, não parecia sofrer quando olhei em seus olhos. Meu Deus! Eu tinha palavras que me significasse aquela visão? Meu Deus?
   Tratei de fazer o que pude para reconduzir as coisas minimamente aos seus lugares. Aos seus lugares cada coisa! Todos se encaminhem aos seus, pois não houve nada aqui; apenas um fato fez parar o ritmo do mundo? E segui em frente com a imagem dos olhos de Carlina grudada em minha cabeça.
                                                  
                                            parte II

   Ao chegar em casa percebo na parte interna da minha pasta um envelope de carta subescrito "Estranho", de próprio punho, letra feminina. Coloquei Carlina sobre a cama sem perceber que havia em seu vestido um rasgo deixando a mostra boa parte de suas pernas. Agilmente abri o envelope e li:

“Senti que depois de ser tão amada pra nada mais serviria. Tinha um nome em meu vestido, era como a minha dona me chamava, ela mesma havia costurado em meu vestido, lembro-me do dia em que eu fui dada a ela, sempre estava em seus braços em todos os momentos do dia.

Os anos foram se passando, ela foi crescendo e esquecendo que eu existia aos poucos. Um dia quando acordei vi que não estava na cama dela, olhei a minha volta e estava em uma caixa, nela havia muitos como eu. Simplesmente perdidos, sem saber o que fazer… Eu sei que fazia tempo que eu não era abraçada por ela, a minha roupinha já estava empoeirada, mas não pensei nunca que eu deixaria de ser a bonequinha preferida dela, ela me trocou por uma boneca de plástico… uma daquelas bem delineadas, simétricas, pintadas com precisão… e eu uma simples bonequinha de pano.
Talvez eu realmente mereça estar em um caixote de papelão junto com essas coisas e esses brinquedos rejeitados. Será que todos os humanos são assim mesmo? É, devem ser mesmo, eles enjoam uns dos outros, por que não enjoariam de uma bonequinha de pano?
Qual será o meu destino?
Sinto pingos a me molhar, sinto que pode ser meu fim, ouço um barulho forte, acho que são humanos passando, será que é agora…
NOSSA….
(tudo está rolando…)
Os brinquedos estão ainda dentro da caixa, algumas folhas estão espalhadas pela rua… ai… acho que vou cair no buraco…
O moço me segurou, limpou a poeira de meu vestidinho - ele me fitava com aqueles olhos que me intrigam… pensei eu: “mais um humano que quer brincar comigo”
Mas ele me olhava com um olhar diferente, um olhar misterioso; parecia ver o que meus olhos queriam lhe mostrar, que apesar de não aparentar, eu estava machucada, apesar de meu sorriso, eu estava em migalhas…
Mas eu finalmente estava segura? Será que ele veio pra me resgatar mesmo?”


                                                          Carlinda
(http://cabecadeborboleta.blogspot.com/)

domingo, 11 de julho de 2010

Enquanto odeio te amar

Faço-lhe uns versos bêbados
Com ódio do seu amor
Depuro que assim
Com muito rancor
Me enveneno por ti
Prolongando essa dor
Gozo na tua falta
Fico no teu amor
Até que alguém me tome olhar
e me permita o descanso no prazer.
Assim, não precisarei mais da agenda do msn;
das solidões dos bares; da esperança de que toque o telefone;
do acaso enquanto ando pelas ruas, entro nas lojas, paro nos jornaleiros.
Enquanto odeio te amar estou cheio de vida, cheio de desejo de nunca mais te amar.

sábado, 10 de julho de 2010

atravessa a tela...

Que corpo é este que tanto resiste ao meu toque? Que corpo tão atravessado por palavras que chega a confundir desejo com pulsão? Que força manifesta é essa fazendo barreira ao delicado que faz partir toda dor e te deixa tão rígida? Será também palavra que vai te fazer permitir a minha entrada pelos seus poros?

De olhar, de tanto querer, já me fiz cinema...e você, só, assiste ao meu enredo e lê a minha imagem, mas, não atravessa a tela.

domingo, 27 de junho de 2010

Novos restos

É muito mais cômodo pensar a vida sem sentido; assim, nos resta morrer - mas algo em nós insiste, algo quer viver: a vida quer viver! O fato de não sabermos qual o sentido da vida - para nós e para tudo que denominamos vivo - pode nos lançar neste torvelinho da busca pelo prazer: então vamos aproveitar o tempo que temos; sejamos dionisíacos! Ou será melhor dormi? Mas, temos contas a pagar... sempre há contas a pagar. Começamos a achar que estas contas podem ser demais: água, luz, telefone, prestações, culpa... quem não tem a mínima culpa? Resolvida a culpa, o que nos restaria? Viver das lembranças daquilo que não fizemos: os amores que não fizemos... pois, resta mesmo mais alguma coisa além de amar?

terça-feira, 1 de junho de 2010

Restos Diurnos

Na universidade...
O acordo é tácito. Tenso é o teatro daqueles que se querem mais honesto. Pode-se falar de tudo. Talvez seja um dos lugares onde a liberdade mais encontrou seu topos. Paga-se o preço conforme a hierarquia. É divertido e um tanto triste.

No silêncio...
Na vez em que ouvi dizer que o que se contava era somente vontade de outro, fiquei mesmo atônito. Passei a reparar nas bocas o movimento mudo que fazem ao lhes serem retiradas as palavras pelo meu ouvido então ensurdecido.
Gostava eu muito de ficar observando a algazarra dos surdos quando se ajuntam em público para conversar. Eles pareciam sempre felizes. No mínimo, alegres. Teriam descoberto que este método de não usar os sons para falar lhes colocavam mais perto da comunicação? Seria apenas o efeito de imagens, que por natureza possuem uma carga maior de sentido? Ou será que prescindir da voz para imprimir palavras os colocam em um nível maior de empatia com o ser de cada um em sua profundidade ôntica, em sua verdade ou origem? Sempre nos atolamos em desencontros toda vez em que tentamos exercitar a fala na comunicação com o outro. E só queríamos era nos ver refletidos neste outro que conhecemos na rua, no colégio, no trabalho, no café, ou no bar. Talvez haja uma exceção na relação amorosa, na sua versão apaixonada. Sempre somos muito parecidos com o outro nestes momentos primeiros do enamoramento. Mas este narcisismo às avessas não nos salva da vontade de outro, e logo logo os desencontros aparecem. Se intensificamos os argumentos, ampliamos as distâncias. Se emudecemos, minimizamos alguma coisa num sentimento de quase pena de nós mesmos por encontrar-mo-nos falhados na função de falar o que desejamos, ou de desejar no que falhamos; enquanto os gestos dos mudos nos causam esta enviesada inveja de que eles conseguem tocar o outro na beira da letra feita com as mãos no ar - e assim, quem sabe, gozar um pouco mais no encontro com o outro. Ensurdeçamos, pois? Talvez pelo menos um pouco mais de calma no falatório prolixo. Um desaceleramento. Uma paradinha pra se observar que não estamos tão mergulhados assim em nós mesmos, em nossa profusão de palavras que parecem vir de dentro. Estamos na beira do outro; as vezes pescamos, as vezes deixamo-nos pescar; mas, muitas vezes perdemos a linha quando falamos demais, e noutras não escutamos o outro, e vai passando.

No ponto...
E naquela simples despedida deixei passar um pouco de afeto a mais. Um beijo no rosto, no lado direito, e um quase roubado abraço ao que ela retribui com um misto de surpresa e prazer. Qual ônibus você vai pegar? No decurso desta frase eu já estava a dois passos dela, e a olhei mais uma vez para lhe responder. Havia uma vontade de não ir, mas também um imperativo posto feito sentença pelo seu cotidiano. Um irmão, um pai doente, a família; e sua vida ia sendo roubada de suas mãos.

Na aula...
Milhares de cachinhos sedosos mal presos no alto da cabeça por um lápis improvisado; e o meu amor desenhava seu perfil: nariz, lábios, rosto, e o olho - que expressão mais linda se acumulava naqueles olhinhos vivos enquanto todo o resto gestava pensando. Se falasse, sua boca diria palavras desencontradas. Era um culto visual com música para seus ouvidos as palavras que ele proferia enquanto ela o bebia indecente.

No balcão...
Estava frio. Quem não tem vício acha que o dia frio não combina com cerveja. Na tentativa de ludibriar a temperatura pedi uma caneca de chop escuro. Sentei ao lado de Claudinha. Tem dia que não há chop escuro, deixemos as coisas claras. Falamos de quase tudo que se pode falar sobre bebidas. E Claudinha fez mais três amigos de balcão aumentando sua rede de contatos reais. Quanto alguns homens pagariam só pra ter a companhia feminina? E se esta além de bela fosse divertida e inteligente?

Na beira do rio...
Vestido de chita preso entre as pernas, acocorada numa pedra na beira do São Francisco, Madalena esfregava as roupas da família. Cinco filhos, um marido, sua mãe de noventa anos de idade, e um sujeito agregado chamado Tico. Este fora encontrado na beira deste rio por Sebastião, marido de Madalena, que pescava de bote naquela madrugada de domingo. Será um dia propício para o suicidio? Bastião nem quis saber. Lançou o bote contra o barranco e logo puxou conversa com Tico. Madalena usa uma barra azul de anil para deixar as roupas claras bem alvejadas. É bonito de se ver estendidas na pedra o brilho que sai das cores nas roupas enquanto quaram ao sol. Tico, naquela manhã, tinha olhos de ressaca - não de choro de pinga, mas de um não se sabe o quê. Isso estranhou Bastião mesmo ao longe. Pescando? Mas não havia vara nas mãos de Tico. Nem enterrada no barranco de espera. De pé olhava o nada acima da correnteza do santo rio. Cantavam em seus ouvidos as águas que corriam para onde. Que semblante era aquele que nem riso era, que não era dor? Ainda hoje este matuto trás no preto do olho aquela música do rio. Um briho molhado que nunca seca, nem mesmo nos dias tórridos enquanto roça a capineira fazendo covas de enterro pra macaxeira.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Não é já mais ficção...

      O que vou escrever aqui não é já mais ficção do que você possa estar achando que seja a sua visão das coisas na vida. Você desconfia. A cada segundo ou minuto em que não relaxa,  desconfia. Vê coisa demais para achar que o sentido possa ser tão claro quanto deseja. Você só quer se sentir bem. Estar bem. Sem angústia alguma te carcomendo em segredo. Quiçá, ser feliz. Mas você olha, e vê. E nada faz sentido. Em tudo volta. Seu coração se inquieta. Respira. Já nas primeiras notas da Valsa de Chopin você já sabia o quanto ia doer estar excluído de um mundo musicado. As notas podem se agrupar de inúmeras maneiras. Aquilo te deixava perplexo. A desconfiança era inundada por um sentimento de quase êxtase. Só não mais porque você temia a total desintegração. Então, você procurou um lugar seguro, talvez na literatura. E passou a olhar de uma certa distância, não tão próximo. Ainda desconfiado com aquelas sequências de palavras - por que tantas? Não daria pra reduzir um pouco a prolixidade? Viu que poderia haver alguma beleza mesmo assim. Passou a pesquisar, perquirir, perscrutar. Quis ir até os confins daquilo que se lhe mostrava tão claramente, embora não ainda conseguisse dizê-lo. Primeiro usou a sistematização. Inventou planos que pudessem fazer ver o sentido pela estrutura: uma certa armação por detrás do móbile de palavras, frases, enunciados que fizesse refletir as enunciações. Quando tudo estava montado fez mover a engenhoca, como fez Aristóteles com seu "peteleco" no primeiro motor imóvel. O verbo se fez - antes do Gênesis. Maravilhado, você olhou para o chão. Algumas gotas de chuva começavam a marcar a terra seca com círculos que secavam imediatamente - o calor era intenso. Logo depois toda terra estava pintada de uma cor molhada. Era necessário haver água para que daquela vida brotasse sua potência. Chamou-a de desejo. Por algum tempo ficou observando seus passos. Não entendia muito. Quis saber pra onde ia. Quis também saber de onde vinha. Lembrou-se da música. Sem entender esta lembrança, se permitiu um pouco o deleite. Pensou em não voltar. Pensou na carne moída das palavras - quanto trabalho pra se tentar extrair o quê? Quis ficar. Forçou. Tomou mais uma xícara de café forte. Ficou olhando a fumaça serpente que saía do bico da chaleira. Viu que ela não alcançava muita altura e se dissolvia no ar. A música tocada vai pra onde? Some? Acaba? Desaparece no ar? É uma fumaça? Achou que a música se instalara em sua memória e nunca mais sairia - nem mesmo quando tão claramente fosse lembrada. Ficou imaginando se havia outras coisas no mundo que fossem assim. Desconfiava das palavras. Elas não se apresentavam como coisas ou sentimentos. Mas, o que seriam afinal? Por que conseguem nos tocar? O que trazem em si que lhes dá esse poder? Um bando de palavras como de animais numa explosão é capaz de muito estrago. Palavras trançadas com mestria, ou poesia, podem fazer desmanchar corações. Elas não são meros veículos da comunicação. Mas até onde conseguem ir? Neste momento eu as uso tentando mostrar algo para além delas. Eu poderia desenhar coisas em vez de letras - mas aqui é mais fácil - não tenho agora em mãos a oficina cinematográfica, nem uma filmadora, nem uma câmera. Por quanto tempo ainda as palavras escritas em prosa irão conviver com o audiovisual? O fenômeno da escrita via internet parece adiar esta possível sobreposição do audiovisual - milhares de pessoas se comunicam por escrita, mesmo tendo em mãos os dispositivos audiovisuais para esta comunicação - poderiam apenas se vêem e falarem - no entanto, preferem escrever. Todos querem escrever, mesmo que seja a escrita de uma fala.
      Eu tentava pegar fôlego em filmes, livros, teatro, e também na vida que acontecia sem parar lá na cidade. As coisas mais estranhas, uma após outra, iam se sucedendo. Uma mulher com um peso acima de algum padrão, andando apressadamente, se desequilibra enquanto atravessava a rua e não consegue se recompor até que se esborracha no chão depois de sete passadas totalmente a mercê da velocidade que tomou seu corpo pesado lançado para frente com o seu tropeço. A cabeça bateu violentamente no asfalto abrindo-lhe uma beiça na testa. Esta senhora se levanta, com ajuda de algumas pessoas, o sangue escorrendo no rosto desde a altura da testa, e diz: eu me desequilibrei. Pegou um guardanapo branco por alguém oferecido. Apertou-o contra o ferimento e saiu andando em meio a multidão.
      A vida lá fora não é sempre assim. É assim em vários momentos. Um mendigo joga um papel no lixo. Alguém acende um cigarro. O carro avança o sinal vermelho. Uma criança brinca. Um sujeito olha pra bunda que passa. Meninas gritam. Mas o meu pensamento não se desvencilhou de querer encontrar o sentido das coisas. Novamente aos livros, aos filmes, às conversas com pessoas inteligentes. Tiro proveito daquilo que encontro como alguém que procura um tesouro e acha um história. Se só restasse aqueles dias que ainda não existem eu continuaria sentado naquela beira de valão a espera do peixe maior. Tamanhos e quantidades são muito bem vindos na lógica cotidiana recheada de conforto burguês. Recito palavras de um poema que um dia fora um canto. Um dia o rigor mortis daqueles versos se tornaram amolecidos - já se teria passado o tempo em que musas lhes tomavam os corpos e os faziam cantar os cânticos que perpetuavam a vida. Estamos hoje diante dos significantes que circulam como moedas a nos fazer entender os percalços da existência. Interpretamos nossos próprios pensamentos. Mas o que dizem os doutores? Vocês estão perdidos da verdade. Passei a manhã inteira tentando fazer o tempo parar um pouco. Embora eu não me sentisse bem, não queria tomar banho, me barbear, colocar a roupa e sair. Eu estava quase sem vida. Não tinha gosto pra música, pra tv, pra filme, pra nada. Não tinha sono mas não queria sair da cama. Peguei do violão e toquei algumas músicas populares, a voz não saía. Nenhuma emoção, nenhuma lembrança. Minto. Havia lembranças sim, mas a preguiça não me deixava lembrar. Como eu havia mudado de posição a cama - agora de costa pra janela - eu ficava olhando a desordem da minha estante de prateleira, aberta, cheia de coisas e cores. Livros, dvds, cds, retratos expostos - todos da família. Os carros pulsavam arrastados na estrada que há em frente a minha casa. Mas eu percebi uma mudança de ritmo nesse pulsar que contava o tempo. Parecia um movimento circular. O corpo quis espreguiçar. Achei uma caneta na estante, que não reconheci como própria. Levei alguns segundos tentando abri-la. De repende percebo que era só tirar a tampa. Testei-a numa pedaço de papel e sorri com a maciez. Tomei de uma folha em branco afixada na prancheta que ontem usei como apoio para escrever, e comecei a contar o que se passava comigo nesta manhã do dia, talvez vinte e três, do mês de maio, de dois mil e dez. Estou velho demais para minhas pulsões, mas não imagino como pode ser viver sem elas. Ontem mesmo fiquei ao telefone celular por duas horas conversando com uma amiga. Tecemos considerações sobre pessoas do nosso convívio. Falamos sobre a imensa dificuldade de se encontrar pessoas interessantes com boa conversa. E o quanto essa falta nos faz cada mais próximos na amizade. Certo é que não seja difícil identificar que uma coisa é nos falarmos horas a fio, outra é conviver. E nós não tínhamos tanta convivência. Mas, não vem ao caso. Ou talvez até venha. O fato é que o tempo tem nos roubado os dias, os meses, os anos, e estamos apavorados com o envelhecimento. Combinamos de forçar um pouco a barra, e tentarmos encontrar alguém para namoro. Combinamos não sermos tão exigentes com os pretendentes; de pelo menos não querer que um namoro venha preencher o vazio de nossas demandas existenciais - coisa que achamos serem pertinentes apenas aos circuitos de amigos. Quem teria deixado esta maravilhosa caneta em minha casa? Uma fome ainda pequena começa a rondar meu estômago. Ainda a preguiça me faz adiar o banho e a preparação da comida. Mas esta caneta  não desgruda da minha mão. Vou ao vaso sanitário, não me demoro, mas não largo da caneta. Quantos quilômetros ainda resta nesta carga? Leio o conto A baronesa, de Drummond. Invejo sua arte. Admiro. Um conto simples como o que se vê. Leio e vejo a história, suas sutilezas, a versão drummoniana para o fim do Segundo Reinado. Morre-se assim, e sempre vai ter pessoas para fazer circular a riqueza. Algumas vão gastá-la. Olho o relógio na estante. Quase meio-dia. Meio espreguiço. Fecho os olhos. Quase cochilo. Anseio um pouco de organização. Respiro quase fundo. Espreguiço. Percebo a maciez dos travesseiros. Vejo o violão aos pés da  cama. Bocejo. Tiro os óculos. Esfrego os olhos. Lembro de Luciana, uma linda mulher casada que se encantou com a minha forma de trabalhar. Olho novamente a caneta na minha mão, e escrevo estas frases. Pontuo. Vou me levantar, ir até a cozinha preparar algo para comer. Depois tomo banho. Largo da caneta e saio.