quarta-feira, 26 de maio de 2010

Não é já mais ficção...

      O que vou escrever aqui não é já mais ficção do que você possa estar achando que seja a sua visão das coisas na vida. Você desconfia. A cada segundo ou minuto em que não relaxa,  desconfia. Vê coisa demais para achar que o sentido possa ser tão claro quanto deseja. Você só quer se sentir bem. Estar bem. Sem angústia alguma te carcomendo em segredo. Quiçá, ser feliz. Mas você olha, e vê. E nada faz sentido. Em tudo volta. Seu coração se inquieta. Respira. Já nas primeiras notas da Valsa de Chopin você já sabia o quanto ia doer estar excluído de um mundo musicado. As notas podem se agrupar de inúmeras maneiras. Aquilo te deixava perplexo. A desconfiança era inundada por um sentimento de quase êxtase. Só não mais porque você temia a total desintegração. Então, você procurou um lugar seguro, talvez na literatura. E passou a olhar de uma certa distância, não tão próximo. Ainda desconfiado com aquelas sequências de palavras - por que tantas? Não daria pra reduzir um pouco a prolixidade? Viu que poderia haver alguma beleza mesmo assim. Passou a pesquisar, perquirir, perscrutar. Quis ir até os confins daquilo que se lhe mostrava tão claramente, embora não ainda conseguisse dizê-lo. Primeiro usou a sistematização. Inventou planos que pudessem fazer ver o sentido pela estrutura: uma certa armação por detrás do móbile de palavras, frases, enunciados que fizesse refletir as enunciações. Quando tudo estava montado fez mover a engenhoca, como fez Aristóteles com seu "peteleco" no primeiro motor imóvel. O verbo se fez - antes do Gênesis. Maravilhado, você olhou para o chão. Algumas gotas de chuva começavam a marcar a terra seca com círculos que secavam imediatamente - o calor era intenso. Logo depois toda terra estava pintada de uma cor molhada. Era necessário haver água para que daquela vida brotasse sua potência. Chamou-a de desejo. Por algum tempo ficou observando seus passos. Não entendia muito. Quis saber pra onde ia. Quis também saber de onde vinha. Lembrou-se da música. Sem entender esta lembrança, se permitiu um pouco o deleite. Pensou em não voltar. Pensou na carne moída das palavras - quanto trabalho pra se tentar extrair o quê? Quis ficar. Forçou. Tomou mais uma xícara de café forte. Ficou olhando a fumaça serpente que saía do bico da chaleira. Viu que ela não alcançava muita altura e se dissolvia no ar. A música tocada vai pra onde? Some? Acaba? Desaparece no ar? É uma fumaça? Achou que a música se instalara em sua memória e nunca mais sairia - nem mesmo quando tão claramente fosse lembrada. Ficou imaginando se havia outras coisas no mundo que fossem assim. Desconfiava das palavras. Elas não se apresentavam como coisas ou sentimentos. Mas, o que seriam afinal? Por que conseguem nos tocar? O que trazem em si que lhes dá esse poder? Um bando de palavras como de animais numa explosão é capaz de muito estrago. Palavras trançadas com mestria, ou poesia, podem fazer desmanchar corações. Elas não são meros veículos da comunicação. Mas até onde conseguem ir? Neste momento eu as uso tentando mostrar algo para além delas. Eu poderia desenhar coisas em vez de letras - mas aqui é mais fácil - não tenho agora em mãos a oficina cinematográfica, nem uma filmadora, nem uma câmera. Por quanto tempo ainda as palavras escritas em prosa irão conviver com o audiovisual? O fenômeno da escrita via internet parece adiar esta possível sobreposição do audiovisual - milhares de pessoas se comunicam por escrita, mesmo tendo em mãos os dispositivos audiovisuais para esta comunicação - poderiam apenas se vêem e falarem - no entanto, preferem escrever. Todos querem escrever, mesmo que seja a escrita de uma fala.
      Eu tentava pegar fôlego em filmes, livros, teatro, e também na vida que acontecia sem parar lá na cidade. As coisas mais estranhas, uma após outra, iam se sucedendo. Uma mulher com um peso acima de algum padrão, andando apressadamente, se desequilibra enquanto atravessava a rua e não consegue se recompor até que se esborracha no chão depois de sete passadas totalmente a mercê da velocidade que tomou seu corpo pesado lançado para frente com o seu tropeço. A cabeça bateu violentamente no asfalto abrindo-lhe uma beiça na testa. Esta senhora se levanta, com ajuda de algumas pessoas, o sangue escorrendo no rosto desde a altura da testa, e diz: eu me desequilibrei. Pegou um guardanapo branco por alguém oferecido. Apertou-o contra o ferimento e saiu andando em meio a multidão.
      A vida lá fora não é sempre assim. É assim em vários momentos. Um mendigo joga um papel no lixo. Alguém acende um cigarro. O carro avança o sinal vermelho. Uma criança brinca. Um sujeito olha pra bunda que passa. Meninas gritam. Mas o meu pensamento não se desvencilhou de querer encontrar o sentido das coisas. Novamente aos livros, aos filmes, às conversas com pessoas inteligentes. Tiro proveito daquilo que encontro como alguém que procura um tesouro e acha um história. Se só restasse aqueles dias que ainda não existem eu continuaria sentado naquela beira de valão a espera do peixe maior. Tamanhos e quantidades são muito bem vindos na lógica cotidiana recheada de conforto burguês. Recito palavras de um poema que um dia fora um canto. Um dia o rigor mortis daqueles versos se tornaram amolecidos - já se teria passado o tempo em que musas lhes tomavam os corpos e os faziam cantar os cânticos que perpetuavam a vida. Estamos hoje diante dos significantes que circulam como moedas a nos fazer entender os percalços da existência. Interpretamos nossos próprios pensamentos. Mas o que dizem os doutores? Vocês estão perdidos da verdade. Passei a manhã inteira tentando fazer o tempo parar um pouco. Embora eu não me sentisse bem, não queria tomar banho, me barbear, colocar a roupa e sair. Eu estava quase sem vida. Não tinha gosto pra música, pra tv, pra filme, pra nada. Não tinha sono mas não queria sair da cama. Peguei do violão e toquei algumas músicas populares, a voz não saía. Nenhuma emoção, nenhuma lembrança. Minto. Havia lembranças sim, mas a preguiça não me deixava lembrar. Como eu havia mudado de posição a cama - agora de costa pra janela - eu ficava olhando a desordem da minha estante de prateleira, aberta, cheia de coisas e cores. Livros, dvds, cds, retratos expostos - todos da família. Os carros pulsavam arrastados na estrada que há em frente a minha casa. Mas eu percebi uma mudança de ritmo nesse pulsar que contava o tempo. Parecia um movimento circular. O corpo quis espreguiçar. Achei uma caneta na estante, que não reconheci como própria. Levei alguns segundos tentando abri-la. De repende percebo que era só tirar a tampa. Testei-a numa pedaço de papel e sorri com a maciez. Tomei de uma folha em branco afixada na prancheta que ontem usei como apoio para escrever, e comecei a contar o que se passava comigo nesta manhã do dia, talvez vinte e três, do mês de maio, de dois mil e dez. Estou velho demais para minhas pulsões, mas não imagino como pode ser viver sem elas. Ontem mesmo fiquei ao telefone celular por duas horas conversando com uma amiga. Tecemos considerações sobre pessoas do nosso convívio. Falamos sobre a imensa dificuldade de se encontrar pessoas interessantes com boa conversa. E o quanto essa falta nos faz cada mais próximos na amizade. Certo é que não seja difícil identificar que uma coisa é nos falarmos horas a fio, outra é conviver. E nós não tínhamos tanta convivência. Mas, não vem ao caso. Ou talvez até venha. O fato é que o tempo tem nos roubado os dias, os meses, os anos, e estamos apavorados com o envelhecimento. Combinamos de forçar um pouco a barra, e tentarmos encontrar alguém para namoro. Combinamos não sermos tão exigentes com os pretendentes; de pelo menos não querer que um namoro venha preencher o vazio de nossas demandas existenciais - coisa que achamos serem pertinentes apenas aos circuitos de amigos. Quem teria deixado esta maravilhosa caneta em minha casa? Uma fome ainda pequena começa a rondar meu estômago. Ainda a preguiça me faz adiar o banho e a preparação da comida. Mas esta caneta  não desgruda da minha mão. Vou ao vaso sanitário, não me demoro, mas não largo da caneta. Quantos quilômetros ainda resta nesta carga? Leio o conto A baronesa, de Drummond. Invejo sua arte. Admiro. Um conto simples como o que se vê. Leio e vejo a história, suas sutilezas, a versão drummoniana para o fim do Segundo Reinado. Morre-se assim, e sempre vai ter pessoas para fazer circular a riqueza. Algumas vão gastá-la. Olho o relógio na estante. Quase meio-dia. Meio espreguiço. Fecho os olhos. Quase cochilo. Anseio um pouco de organização. Respiro quase fundo. Espreguiço. Percebo a maciez dos travesseiros. Vejo o violão aos pés da  cama. Bocejo. Tiro os óculos. Esfrego os olhos. Lembro de Luciana, uma linda mulher casada que se encantou com a minha forma de trabalhar. Olho novamente a caneta na minha mão, e escrevo estas frases. Pontuo. Vou me levantar, ir até a cozinha preparar algo para comer. Depois tomo banho. Largo da caneta e saio.