terça-feira, 1 de junho de 2010

Restos Diurnos

Na universidade...
O acordo é tácito. Tenso é o teatro daqueles que se querem mais honesto. Pode-se falar de tudo. Talvez seja um dos lugares onde a liberdade mais encontrou seu topos. Paga-se o preço conforme a hierarquia. É divertido e um tanto triste.

No silêncio...
Na vez em que ouvi dizer que o que se contava era somente vontade de outro, fiquei mesmo atônito. Passei a reparar nas bocas o movimento mudo que fazem ao lhes serem retiradas as palavras pelo meu ouvido então ensurdecido.
Gostava eu muito de ficar observando a algazarra dos surdos quando se ajuntam em público para conversar. Eles pareciam sempre felizes. No mínimo, alegres. Teriam descoberto que este método de não usar os sons para falar lhes colocavam mais perto da comunicação? Seria apenas o efeito de imagens, que por natureza possuem uma carga maior de sentido? Ou será que prescindir da voz para imprimir palavras os colocam em um nível maior de empatia com o ser de cada um em sua profundidade ôntica, em sua verdade ou origem? Sempre nos atolamos em desencontros toda vez em que tentamos exercitar a fala na comunicação com o outro. E só queríamos era nos ver refletidos neste outro que conhecemos na rua, no colégio, no trabalho, no café, ou no bar. Talvez haja uma exceção na relação amorosa, na sua versão apaixonada. Sempre somos muito parecidos com o outro nestes momentos primeiros do enamoramento. Mas este narcisismo às avessas não nos salva da vontade de outro, e logo logo os desencontros aparecem. Se intensificamos os argumentos, ampliamos as distâncias. Se emudecemos, minimizamos alguma coisa num sentimento de quase pena de nós mesmos por encontrar-mo-nos falhados na função de falar o que desejamos, ou de desejar no que falhamos; enquanto os gestos dos mudos nos causam esta enviesada inveja de que eles conseguem tocar o outro na beira da letra feita com as mãos no ar - e assim, quem sabe, gozar um pouco mais no encontro com o outro. Ensurdeçamos, pois? Talvez pelo menos um pouco mais de calma no falatório prolixo. Um desaceleramento. Uma paradinha pra se observar que não estamos tão mergulhados assim em nós mesmos, em nossa profusão de palavras que parecem vir de dentro. Estamos na beira do outro; as vezes pescamos, as vezes deixamo-nos pescar; mas, muitas vezes perdemos a linha quando falamos demais, e noutras não escutamos o outro, e vai passando.

No ponto...
E naquela simples despedida deixei passar um pouco de afeto a mais. Um beijo no rosto, no lado direito, e um quase roubado abraço ao que ela retribui com um misto de surpresa e prazer. Qual ônibus você vai pegar? No decurso desta frase eu já estava a dois passos dela, e a olhei mais uma vez para lhe responder. Havia uma vontade de não ir, mas também um imperativo posto feito sentença pelo seu cotidiano. Um irmão, um pai doente, a família; e sua vida ia sendo roubada de suas mãos.

Na aula...
Milhares de cachinhos sedosos mal presos no alto da cabeça por um lápis improvisado; e o meu amor desenhava seu perfil: nariz, lábios, rosto, e o olho - que expressão mais linda se acumulava naqueles olhinhos vivos enquanto todo o resto gestava pensando. Se falasse, sua boca diria palavras desencontradas. Era um culto visual com música para seus ouvidos as palavras que ele proferia enquanto ela o bebia indecente.

No balcão...
Estava frio. Quem não tem vício acha que o dia frio não combina com cerveja. Na tentativa de ludibriar a temperatura pedi uma caneca de chop escuro. Sentei ao lado de Claudinha. Tem dia que não há chop escuro, deixemos as coisas claras. Falamos de quase tudo que se pode falar sobre bebidas. E Claudinha fez mais três amigos de balcão aumentando sua rede de contatos reais. Quanto alguns homens pagariam só pra ter a companhia feminina? E se esta além de bela fosse divertida e inteligente?

Na beira do rio...
Vestido de chita preso entre as pernas, acocorada numa pedra na beira do São Francisco, Madalena esfregava as roupas da família. Cinco filhos, um marido, sua mãe de noventa anos de idade, e um sujeito agregado chamado Tico. Este fora encontrado na beira deste rio por Sebastião, marido de Madalena, que pescava de bote naquela madrugada de domingo. Será um dia propício para o suicidio? Bastião nem quis saber. Lançou o bote contra o barranco e logo puxou conversa com Tico. Madalena usa uma barra azul de anil para deixar as roupas claras bem alvejadas. É bonito de se ver estendidas na pedra o brilho que sai das cores nas roupas enquanto quaram ao sol. Tico, naquela manhã, tinha olhos de ressaca - não de choro de pinga, mas de um não se sabe o quê. Isso estranhou Bastião mesmo ao longe. Pescando? Mas não havia vara nas mãos de Tico. Nem enterrada no barranco de espera. De pé olhava o nada acima da correnteza do santo rio. Cantavam em seus ouvidos as águas que corriam para onde. Que semblante era aquele que nem riso era, que não era dor? Ainda hoje este matuto trás no preto do olho aquela música do rio. Um briho molhado que nunca seca, nem mesmo nos dias tórridos enquanto roça a capineira fazendo covas de enterro pra macaxeira.

3 comentários:

  1. E os dias se arrastam em partículas nas infindas caçadas de Narciso debruçado sobre o lago a se procurar.
    Procura se enamorar de si mesmo?
    Ou se contempla tanto no intuito de conhecer a si mesmo, sem saber que só se conhece a si na relação com um outro...?
    Grande mistério é Narciso...

    Agradeço pela visita a meu blog!
    Abraço.

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  2. conversando um dia desses sobre o estatuto da literatura (nada mais pedante e desimportante), digo de passagem, que, em beira de rio, não se faz outra coisa além disso. Você, modesto, dirá: "não sei, Claudio, não sei o que são esses retalhos diurnos, não sei se é literatura, sei que alguma coisa é." A mim, você é caríssimo, Seu Nelson, caríssimo!

    forte abraço

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