terça-feira, 13 de julho de 2010

je suis amoureuse!

                                              parte I

 Acho que os lixeiros estavam em greve quando eu andava pelo centro da cidade e sem querer chutei-a. Ela deslizou por uns dois metros - eu andava apressadamente - indo parar perto do bueiro, cuja tampa havia sido retirada (talvez para servir de churrasqueira).
   Ela tinha um colar de miçangas coloridas no pescoço, uma jardineira amarela, fitas nos cabelos, sapatinhos pretos, e, nos olhos, sombras verdes. Seus cílios pretos eram grandes feito asas de beija-flor.
  Quase caiu naquele buraco imundo! Mas eu corri com muito sentimento, tomei-a em minhas mãos. Limpei um pouco a sujeira que não estava encardida - tive que dar uns tapinhas para tirar o pó. Foi quando percebi que Carlina sorria.
   Seu nome bordado no peito do vestido fazia destacar-se pela cor-de-rosa. Fiquei envergonhado quando me dei conta que estava observando os seus lábios vermelhos (ela não me parecia ter menos de dezoito anos).
  Olhos verdes! Vocês me perseguem? Acolchoei um canto da minha pasta e a acolhi naquele ninho como fazem aqueles que gostam de filhotes. É muito sutil o amor.
   Enquanto caminhava em direção ao terminal de ônibus, já vagarosamente, pensei no que poderia ter acontecido a ela para estar jogada daquele jeito junto ao lixo da cidade. Não havia marcas de alguma violência em seu corpo; pelo menos nas partes visíveis (eu não ousaria verificar no todo, ali, aos olhos dos passantes).
   Percebi em mim uma grave mudança no ritmo do meu coração. Ele batia descompassado. O sangue corria mais lento na medida em que no meu caminho fui observando aquelas vidas que se acotovelavam a procura de algum espaço para dormir nas calçadas e cantos da praça, recorrendo apenas a alguns pedaços de papelão. Alguns tinham uma peleja que mais parecia vinda de uma guerra.
   Carlina estava sem nenhuma proteção. Jogada mesmo ao solo. Uma perna dobrara-se sobre a outra; o chão no rosto. Corri para apanhá-la, estranho, não parecia sofrer quando olhei em seus olhos. Meu Deus! Eu tinha palavras que me significasse aquela visão? Meu Deus?
   Tratei de fazer o que pude para reconduzir as coisas minimamente aos seus lugares. Aos seus lugares cada coisa! Todos se encaminhem aos seus, pois não houve nada aqui; apenas um fato fez parar o ritmo do mundo? E segui em frente com a imagem dos olhos de Carlina grudada em minha cabeça.
                                                  
                                            parte II

   Ao chegar em casa percebo na parte interna da minha pasta um envelope de carta subescrito "Estranho", de próprio punho, letra feminina. Coloquei Carlina sobre a cama sem perceber que havia em seu vestido um rasgo deixando a mostra boa parte de suas pernas. Agilmente abri o envelope e li:

“Senti que depois de ser tão amada pra nada mais serviria. Tinha um nome em meu vestido, era como a minha dona me chamava, ela mesma havia costurado em meu vestido, lembro-me do dia em que eu fui dada a ela, sempre estava em seus braços em todos os momentos do dia.

Os anos foram se passando, ela foi crescendo e esquecendo que eu existia aos poucos. Um dia quando acordei vi que não estava na cama dela, olhei a minha volta e estava em uma caixa, nela havia muitos como eu. Simplesmente perdidos, sem saber o que fazer… Eu sei que fazia tempo que eu não era abraçada por ela, a minha roupinha já estava empoeirada, mas não pensei nunca que eu deixaria de ser a bonequinha preferida dela, ela me trocou por uma boneca de plástico… uma daquelas bem delineadas, simétricas, pintadas com precisão… e eu uma simples bonequinha de pano.
Talvez eu realmente mereça estar em um caixote de papelão junto com essas coisas e esses brinquedos rejeitados. Será que todos os humanos são assim mesmo? É, devem ser mesmo, eles enjoam uns dos outros, por que não enjoariam de uma bonequinha de pano?
Qual será o meu destino?
Sinto pingos a me molhar, sinto que pode ser meu fim, ouço um barulho forte, acho que são humanos passando, será que é agora…
NOSSA….
(tudo está rolando…)
Os brinquedos estão ainda dentro da caixa, algumas folhas estão espalhadas pela rua… ai… acho que vou cair no buraco…
O moço me segurou, limpou a poeira de meu vestidinho - ele me fitava com aqueles olhos que me intrigam… pensei eu: “mais um humano que quer brincar comigo”
Mas ele me olhava com um olhar diferente, um olhar misterioso; parecia ver o que meus olhos queriam lhe mostrar, que apesar de não aparentar, eu estava machucada, apesar de meu sorriso, eu estava em migalhas…
Mas eu finalmente estava segura? Será que ele veio pra me resgatar mesmo?”


                                                          Carlinda
(http://cabecadeborboleta.blogspot.com/)

9 comentários:

  1. Adorei, aguardo anciosa por saber como essa história desenrola-se, espero que fim não tenha... ^^

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  2. Li a primeira parte e cá estou, acabando de ler a segunda...
    Olha só, deixo um poema do meu pai... poeta de cidade pequena, criado na roça... porém publicou um livro... não se acha poesias dele pela net, por isso vou deixar essa aqui:

    BONECA ESQUECIDA

    Boneca de pano, num canto jogada,
    Não vale mais nada àquela menina
    Que já está crescida em tem namorado,
    Com dia marcado de cumprir a sina.

    Boneca que um dia serviu de acalanto
    Acalmando o pranto daquela garota...
    Hoje estás velha, não vale mais nada,
    Num canto jogada, apresenta-te rota.

    Boneca-menina que já pertenceu
    A quem te esqueceu, por outro brinquedo

    ...

    A menina-boneca que foi tua dona
    Hoje te abandona e te faz segredo.

    Boneca, eu não quero ter o teu destino,
    Pois eu sou menino e tenho alegria...
    Porém, vou pegar-te, pois estás carente,
    E dar de presente a outra "guria"!!!

    LUÍS CARLOS FERREIRA

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  3. Guria Flor,
    Dou-te este presente, com amor
    Não comprado em loja, nem novo
    Mas vem com uma história de verdade
    Pra ouvir é só afagar o coração
    Eu sou ainda menino no amor
    Se não brinco de boneca
    Escrevo coisas pra ti minha Flor
    Mas esta que achei, de pano
    Me transformou em poeta
    Me fez homem menino
    Tirou-me todo o rancor
    De tentar compreender menina
    Em vez de entender o amor

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  4. Nelson,

    Decididamente vc tem o dom da escrita e nos prende a cada linha, nos atiça a curiosidade e nos faz querer ver qual rumo irá tomar.
    Sorte a minha tê-lo encontrado!

    Beijo,

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  5. Quanto de Carlinda dentro de cada um de nós? Quantos tem a sorte de ter seu pó espanado? Mas gostei mesmo desta visão dos humanos pelos olhos de outro ser, já tentei algo parecido. Abraço.

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  6. Eu adorei esse poema que vc deixou no meu blog, são as minhas preciosidades!
    Muiito agradecida, é lindo!!
    Abraço, querido!

    =)

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  7. Oi Nelson,

    como prometido, vim até esse desvio. Dá-me apenas um tempinho para que meus olhos repletos do outro caminho possam ver direito para onde este me levará.


    Vou voltar, hoje foi apenas um reconhecimento panorâmico. Que diabo é esse perfil, só tenho dois neurônios, vou chutar qualquer um.

    abs,

    Maria

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